segunda-feira, 3 de junho de 2013

O Maracanã da gentrificação


Botafogo, em plena transformação, com demolições de vilas e sobrados, para dar lugar a novos condomínios fechados.

Eu me lembro, quando estava em Paris, da discussão sobre as reformas das estações do metrô. A prefeitura da cidade encomendou a diferentes escritórios de arquitetos a renovação das plataformas e o que se percebeu foi que as mudanças também visavam a impedir que os sem-teto pudessem transformar os bancos em cama, além de uma série de modificações que tornavam uma prolongada permanência na estação um tanto desconfortável. A ideia era tornar tudo bonito, funcional e moderno, sem dar brecha a usos não planejados pelos gestores para as plataformas. Não adiantou muito, porque as pessoas passaram a dormir deitadas no chão. Mas as mudanças provocaram acaloradas discussões, com opiniões a favor e contra na mídia e nas universidades, e evidenciou-se, mais uma vez, o problema do que fazer com a miséria e a pobreza na cidade.

Em plena era das cidades-mercadorias, em que as metrópoles disputam entre si os fluxos do capital globalizado, seja atraindo turistas ou investimentos em negócios, criar as condições para receber esses recursos tornou-se uma prioridade para as administrações municipais. Questões como violência, miséria, má infraestrutura, transportes, limpeza urbana, mobilidade e sinalização, oferta de serviços, realização de megaeventos, políticas de tolerância zero e choques de ordem viraram prioridade, apoiadas num discurso vertiginoso de desenvolvimento e euforia com a cidade que o cidadão herdará como consequência dessas reformas.

Vemos exemplos que, aparentemente, deram certo, servindo de modelo e se repetindo em outras cidades, como as políticas de segurança adotadas em Bogotá, que inspiraram parte da políticas das UPPs no Rio; a política de tolerância zero do prefeito de Nova York, Rudy Guiliani, transformada em choque de ordem aqui. A renovação da área portuária, normalmente degradada, em área de serviços e de negócios, com um museu feito por um arquiteto renomado, enfim, os exemplos se repetem. Tudo isso, exigiu que o Poder Público gerisse a cidade como uma empresa, com gestão profissional e metas de produtividade. E, com os cofres vazios, as prefeituras (e demais instâncias executivas) se associaram à iniciativa privada, que em troca, abocanhou boa parte das benesses dessas reformas urbanas, a começar por mudança no plano diretor para alterar gabaritos de construção e mudar zoneamento de áreas urbanas para a construção de shoppings, prédios residenciais de negócios etc.

O setor imobiliário, aliás, foi o que mais se beneficiou dessa lógica de gestão urbana. Apoiou-se inicialmente nas isenções tributárias concedidas pelo governo federal, preocupado com a geração de emprego no setor da construção civil. Em seguida, o Congresso aprovou a reforma da lei do inquilinato, com o objetivo de destravar o mercado de imóveis, mas com mudanças que tornaram precárias a posição dos inquilinos. O resultado foi uma renovação do tecido urbano dos bairros com uma profusão de construção de prédios, descaracterizando bairros tradicionais, e um êxodo urbano interno provocado pelo que os sociólogos britânicos e americanos chamam de gentrificação.

Mas o problema dessa lógica é que, na bela cidade do futuro, não há lugar para certa parcela da população. Exatamente essa que vai sendo expulsa de bairros tradicionais ora por políticas de remoção, como a que presenciamos na zona portuária ou na Vila Autódromo, ou expulsas pela gentrificação. Ao mesmo tempo, questões básicas como educação, pobreza, saúde, transportes, violência urbana, que exigem investimentos com uma lógica social, sem gerar uma visibilidade imediata, que torne a cidade mais atraente ao capital globalizado, vão sendo relegadas ao segundo plano. O importante é tornar visíveis as reformas urbanas, as belezas naturais, a cultura da população, criando uma imagem de marketing que transforme a cidade em marca internacional.

Protesto na inauguração do Maracanã contra a privatização do estádio e a demolição de imóveis do entrono (foto: André Durão/Globo Esporte)

Quem foi ao Maracanã ontem, na inauguração do estádio, como meu amigo Jason Vogel, ficou impressionado com a beleza, a organização e limpeza do Estádio Mário Filho. Depois dos elogios, no entanto, nos lembramos de jogos históricos que presenciamos ali (eu vi Brasil 1 x 0 Paraguai, gol de Pelé, em 1969, na eliminatória da Copa do Mundo de 70, com o maior público de todos os tempos no Maraca: 210 mil torcedores), falamos de “geraldinos” e “arquibaldos”, e Jason constatou: “O novo Maracanã não tem pobre. É o Maracanã da gentrificação”.

Esse tipo de lógica urbana é uma contradição com a filosofia de inclusão social, que o governo federal conseguiu implementar, ainda que precariamente, nos últimos anos, distribuindo um pouco melhor a renda nacional, gerando empregos formais, reformando leis coloniais de empregados domésticos, entre outras iniciativas. Ela inclusive ameaça a continuidade dessa maior integração social, atrasando investimentos em educação, moradia e saúde, os pontos centrais de uma gestão humana, voltada para as pessoas e não exclusivamente para determinadas parcelas da população e para a criação de uma imagem fantasiosa de cidade maravilhosa, meramente como uma marca publicitária.

Fantasia que vai fazendo água diante da realidade de tiroteios, tráfico e turistas atacados em favelas pacificadas; no caos do trânsito (em que se colocam motoristas de ônibus como vilões e carrascos de ciclistas, mas não se fala do poder e da responsabilidade das empresas de ônibus no problema do transporte urbano), nas reformas de áreas urbanas segundo lógicas de demolições e sem uma consciência clara e definida do patrimônio histórico, da identidade cultural do tecido urbano, resultando a cidade numa esquizofrenia arquitetônica. E são muitos os exemplos de realidade que, aqui e ali, explodem na cara do morador anestesiado pela euforia,

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